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UMA SUAVE E INOCENTE CANÇÃO!
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Logo no início da projeção, mesmo antes dos créditos, “The Willow Wally”, música de Paul Dehn, e que será cantarolada pela menina durante todo o filme, dá o tom da história. Com leveza e suavidade começamos a ser inseridos na trama mesmo antes de imaginarmos que isto estivesse ocorrendo. O diretor Jack Clayton não caiu na armadilha de utilizar as técnicas expressionistas onde eram enfatizadas as diferenças entre o preto e o branco de maneira brusca, quando as sombras como que, estivessem carregando o mal, deixavam um clima pesado no ar, dando um tom sufocante e opressivo durante toda a projeção. Não! O promissor (na época) diretor inglês foi mais sutil e rodou a sua obra-prima de forma leve e suave. Não há aqui o jogo brusco entre o claro e o escuro, entre a noite e o dia; há a transposição feita suavemente como se as sombras fossem retiradas de cena flutuando como uma pena no ar para depois retornar novamente da mesma forma na cena seguinte. Mas, sentimos que tudo isso é enganoso, pois o terror se esconde em sua leveza e sutileza. O filme inicia-se com um fundo negro e uma delicada canção com uma suave voz infantil nos envolve em sua leveza e suavidade:
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“Nos deitamos meu amor e eu
Sob o salgueiro-chorão
Mas agora deito apenas eu
E choro ao lado da árvore
Cantando salgueiro Wally
Junto à árvore que chora comigo
Cantando salgueiro Wally
Até meu amado voltar pra mim
Nos deitamos meu amor e eu
Sob o salgueiro-chorão
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E neste momento em que o símbolo da “Twentieth Century-Fox” começa a anunciar os créditos suavemente, sem fazer a sua aparição estrondosa característica, temos certeza que a música e o tom da música serão a chave dos mistérios do filme.
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Mas agora deito somente eu
Salgueiro, estou morrendo
Salgueiro, estou morrendo”.
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Logo em seguida, a primeira fantástica transposição é feita por pássaros cantando onde a protagonista é inserida num fundo que continua negro e enquanto os créditos avançam e começamos a ouvir a trilha sonora de Georges Auric, nos damos conta que a história já começou, mesmo antes do início, propriamente dito, do filme.
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“Tudo que eu quero é salvar
as crianças, não destruí-las.
Amo as crianças mais que tudo.
Elas precisam de afeto, amor...
De alguém que se apegue a elas,
e a quem elas se apeguem”.
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E neste momento percebemos duas coisas: a dor de uma mulher que reza e que esta cena (que vamos descobrir somente ao final) não existe em lugar nenhum do filme! A cena já é o filme!, que começou e nem nos demos conta, é a antecipação do drama da personagem principal. Uma medida inusitada e fantástica do diretor Jack Clayton, sem dúvidas! A transposição do escuro para o claro é feita suavemente e a protagonista em toda a sua jovialidade é anunciada aos espectadores. Desde já podemos perceber que o roteiro do filme será brilhante e que seus roteiristas William Archibald e Truman Capote, com diálogos e cenas adicionais de John Mortiner, foram, realmente, fantásticos, e com certeza, Jack Clayton não teria o enorme sucesso que teve com este filme se não fossem a companhia deste trio brilhante e competente ao seu lado. A história ao qual estamos prestes a acompanhar é, na verdade, simples. Na maioria das sinopses sobre o filme dizem que a história gira em torno de uma governanta que aceita tomar conta de duas crianças num casarão no interior da Inglaterra, e que começa a desconfiar que fantasmas as estivessem corrompendo. O roteiro foi baseado num conto do escritor Henry James, “A Volta do Parafuso”. Aqui, a meu ver, os brilhantes roteiristas conseguiram fazer a melhor adaptação do conto, me arrisco até em afirmar, que superaram esta famosa obra do escritor americano. A Srta. Giddens (Deborah Kerr, numa das melhores interpretações de sua carreira) é contratada por um lorde inglês (Michael Redgrave, numa ponta fantástica), tio de Flora (Pamela Franklin) e Miles (Martin Stephens), órfãos que o egoísta aristocrata, que está mais preocupado em festejar sua juventude, não tem tempo para eles, nem sequer vai visitá-los.
A sua franqueza ao contratar a Srta. Giddens demonstra bem o seu caráter:
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“Sou Solteiro, mas não solitário,
devo acrescentar.
Em resumo Srta. Giddens,
sou um sujeito muito egoísta.
A última pessoa a se ocupar
de duas crianças órfãos.
Infelizmente.
Pois não tenho para elas espaço,
nem mental nem emocional”.
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A entrevista do tio das crianças com a governanta continua, de forma que, não só ela, mas nós ficamos inteirados sobre a situação que vamos encontrar mais adiante: as crianças são órfãs, os pais morreram de forma misteriosa, as crianças só têm o tio que não tem tempo para elas, elas moram numa casa de campo, ele na cidade, as crianças precisam de amor e afeto e de alguém que se apegue a elas e a quem elas se apeguem, mas sobretudo, as palavras finais da entrevista deixa claro a total ausência do tio em relação as crianças e a sua mais completa frieza em relação a elas:
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“Srta. Giddens,
a pessoa que eu contratar
deve prometer solenemente aceitar
responsabilidade total e absoluta.
Ela nunca deve me incomodar.
Nunca, nunca.
Nem se queixar,
pedir auxílio ou escrever.
Simplesmente assumir
tudo e me deixar em paz”.
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A Srta. Giddens, antes de aceitar, pergunta se as crianças já tiveram outra governanta. De forma um tanto ambígua e carregadas de mistério, somos informados pelas palavras do tio das crianças que houve, mas a governanta morrera. A transposição da cidade para o campo é feita de forma suave e, sobretudo, ouvimos as notas da bela e suave trilha sonora de Georges Auric dando-nos uma falsa impressão de alegria e tranqüilidade. Logo perceberemos que a vida no campo não é tão tranqüila e alegre assim. A partir da introdução da personagem principal na Mansão de Bly, somos inseridos também nos mistérios da casa e de seus moradores. Sem usar efeitos especiais, música barulhenta ou sustos causados por truques de edição, o diretor construiu um filme que causa medo da maneira mais eficiente possível: construindo de modo lento e sólido uma atmosfera aterrorizante que permanece com o espectador mesmo depois que o filme termina. Desta maneira a história vai se desenvolvendo de maneira tranqüila, mas firme.
Onde os personagens nos são apresentadas sem nenhuma pressa, porém se percebe sinais quase imperceptíveis que há algo meio estranho, meio misterioso nas relações de todos eles. Somos os olhos da própria Srta. Giddens, pois assim como ela, nós somos “penetras” naquela relação misteriosa e inquietante dos moradores da mansão. Logo que a Srta. Giddens conhece a menina Flora, o fabuloso roteiro já nos dá prova de sua construção literária ao apresentar uma cena simples e um diálogo corriqueiro entre um adulto e uma criança, porém carregado de duplo sentido, sinais característicos de obras construídas sob o peso do terror psicológico. Miss Giddens logo que chega a mansão prefere descer da carruagem e caminhar o restante (já dentro dos domínios da mansão) a pé para poder conhecer o lugar e, lógico, para poder refletir sobre sua nova vida, sua decisão de aceitar aquele trabalho. Entre o bucolismo natural do campo com canto de pássaros e a beleza das flores, Miss Giddens ouve, entre o abafado do vento, uma voz feminina chamar repetidas vezes o nome de Flora. Logo ela encontra a menina e esta nega ter ouvida a voz. Mais tarde todos na casa negam terem chamado a menina. Fato que deixa a governanta confusa e faz a deliciosa expectativa do espectador. Em seguida a menina pergunta se ela tem medo de répteis, ao receber a negativa, Flora lhe diz que ainda bem, porque “eu tenho um bem aqui dentro do meu bolso que está ansioso por te conhecer” e em seguida retira um cágado do bolso do vestido e mostra a governanta. Numa cena bem posterior a menina sentada à beira do lago perguntará a Miss Giddens se cágados sabem nadar e ao receber a negativa ela retira o pobre animal de dentro da água e diz “eu desconfiava disso”. Desta maneira vai sendo construído o roteiro literário, enquanto a governanta vai sendo envolvida pela trama, o espectador também será. Pois tanto a governanta como o espectador serão informados mais tarde de que a ex-governanta se suicidara naquele lago. E a Sra. Giddens que inicialmente ficara encantada com Flora, porém, ao receber uma carta, anunciando a chegada do jovem Miles, que deveria estar no colégio interno, dispara nela as dúvidas sobre a relação estranha dos moradores da casa. Todos parecem não dar importância para o fato de o menino ser “expulso” do colégio por comportamentos estranhos: a velha empregada demonstra a sua falta de energia psicológica e moral sobre o assunto minimizando o fato e Flora, bem, Flora feliz da vida, somente espera a chegada do irmão. A Srta. Giddens também se encanta com o jovem Miles, mas mesmo assim tenta extrair dele o porquê de sua saída do colégio. O menino desconversa da forma mais encantadora possível e pelo menos por algum tempo, faz com que a governanta não lhe faça mais perguntas. A partir da chegada de Miles, a rotina da governanta e das duas crianças começa a sofrer uma lenta, mas firme mudança de rumo, e as perguntas começam a se acumular: de quem é o vulto masculino que aparece no alto de uma torre durante uma manhã ensolarada? Quem deu a Flora a caixinha de música com a delicada e “assustadora” canção que a menina vive cantarolando? O que há no sótão, aonde as crianças vão com freqüência? São perguntas que o espectador faz junto com a própria governanta enquanto ela “investiga” estes mistérios: ora pressionando a velha empregada, ora bisbilhotando nos misteriosos e escuros aposentos da mansão. Suas investigações apontam para a ligação das crianças com fatos perturbadores do passado da magnífica mansão vitoriana em que vivem. Ela descobrirá que o vulto masculino é do falecido jardineiro da mansão e que teve um caso tumultuado com a ex-governanta, que também é falecida. A Srta. Giddens suspeita que o casal falecido tenha corrompido as crianças e que elas estejam sob o poder maléfico das aparições macabras. Neste momento, o espectador deve ter consciência que o diretor Jack Clayton realizou um filme de terror psicológico, um horror gótico, uma trama de suspense que se equilibra entre uma fina linha que separa o que é real e o que é imaginário. Portanto, é necessário se perguntar: será verdade as aparições dos fantasmas ou são apenas o sentimento de culpa e angústia que tendem a provocar fantasias alucinatórias e que os fantasmas poderiam bem ser mero produto da imaginação da governanta, figura típica da moral vitoriana reprimida sexualmente e que projeta nos inocentes suas abomináveis perversões? Lembramos do início do filme durante a entrevista da Srta. Giddens com o tio das crianças e recordamos a sua tensão, parecia que estava angustiada e poderia ter um surto alucinatório a qualquer momento. Será que ela não estava “fugindo” de sua vida e buscando “refúgio” em algum lugar tranqüilo? Dúvidas! E mais dúvidas. Que agora também o espectador, que já algum tempo, é “atuante” na história, passa a ter em relação, não só sobre os mistérios da mansão e “seus” moradores, mas também da própria governanta, que passa a ser olhada de forma desconfiada por todos. Eu disse TODOS: as crianças, a velha empregada e também os espectadores que até bem pouco tempo eram seus “cúmplices”. Fantástico roteiro que joga com as dúvidas e lança perguntas a todos. Interpretação fabulosa de Deborah Kerr que abandona os cacoetes hollywoodianos adquiridos nos EUA e nos dá uma demonstração de uma arte puramente inglesa: a magistral atuação baseadas no não-dito, isto é, a sutil interpretação de nuances imperceptíveis, sempre deixando no ar de que há uma emoção interna, contida, abafada. O dizer sem nada falar, apenas com um olhar, um leve tremor da face e dos lábios. Estilo de interpretação que percebemos também nos dois jovens atores. Embora a dupla juvenil de atores não conseguisse acompanhar a interpretação magistral em todo o esplendor da dama do cinema britânico, conseguiram passar, e muito, quase tudo com o olhar: que diziam muito como o olhar sem nada dizer, ou mesmo que dissessem alguma coisa seus olhares diziam outra.
A personagem Mrs. Grose (Meg Jenkins) a velha empregada da mansão, e que é uma invenção dos roteiristas (não existe no livro) para conversar com a protagonista, de maneira a dar a ela a chance de expor seus pensamentos à platéia sem parecer uma louca que fala sozinha, é, sem dúvidas, um grande achado do roteiro, pois dá mais veracidade e ao mesmo tempo deixa em aberto as várias perguntas do espectador. Outro destaque é o magnífico trabalho do fotógrafo Freddie Francis que utilizou os closes de forma econômica, preferindo as tomadas longas e deixando a câmera a uma certa distância dos personagens. Consegue desta forma valorizar o ambiente, criando na platéia a mesma sensação incômoda de tensão que Miss Giddens experimenta. Um trabalho puramente artístico, sem dúvidas. De forma que o espectador nem se dá conta, mas passa boa parte do filme “espreitando” as janelas, as portas e corredores da mansão, e qualquer movimento mais brusco fica sobressaltado. Fico imaginando a reação da platéia na época do lançamento do filme lá no distante ano de 1961. Nisso tudo vemos a mão (comando) de Jack Clayton que preferiu investir nesta atmosfera do que os sustos explícitos. Não é a toa que o filme é cultuado por gerações entre os adeptos deste tipo de cinema e mesmo os críticos e cinéfilos adeptos do “terror explícito” se curvam a sua importância e dignidade. O final do filme, para não dizerem que deixamos a história de lado, é um dos mais tristes em se tratando de filmes deste gênero. Um final que ninguém espera e sob o seu impacto, o espectador sai (saía na época do lançamento do filme nos cinemas) completamente abobalhado e sem conseguir compreender exatamente os seus sentimentos. Podemos dizer que se trata de um filme que está mais para arte do que para o terror. É digno demais para ser catalogado como pertencente a um gênero que caracteriza pela apelação. Pois é isto que o gênero terror é, uma constante apelação em todos os seus jeitos e modos para chamar a atenção do público. Os Inocentes não se presta a estes tipos de coisas, como verdadeiro representante inglês, se porta do início ao fim, de forma digna e altiva. A mesma canção, cantarolada por Flora durante o filme todo, encerra a obra ao final. Cantiga de dar calafrios pelo que sugere, e ao término do filme ela se torna sinistra pelo impacto do final. Uma verdadeira obra de arte.
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